sábado, 4 de abril de 2009

Tratado WC

Por uma certa insistência de amigas e para evitar que a memória não me falhe, resolvi escrever logo o Tratado WC.

Não é de hoje, que tenho um certo desconforto em ir a banheiros públicos. Sempre evitei, o quanto pude, dividir com outros homens esse espaço onde as funções fisiológicas são exercidas por todos os seres humanos que procuram ser asseados, mas nem sempre os são. Não preciso ficar descrevendo cada função e ações exercidas dentro de um WC, mas concentrar-me-ei em apenas uma: a de número 1. Essa, por hora, me bastará.

Quando pequeno, uma fatalidade decorrente de um pedido para ir ao banheiro, deixou-me com marcas profundas que até hoje lembro com um certo constrangimento.

No colégio onde estudava, no pré-primário (por favor, senhoras mães de plantão, atualizem para a nomenclatura correta), havia uma professora que causava temor aos alunos. Ela já era velha em seu aspecto – ignoro a sua idade. De pele clara, magra, curvada, dentuça, usando óculos de grau com aros grossos e sempre com o cabelo preso em forma de coque, causava pânico nas crianças, e, em mim, principalmente.

Um dia, pedi para ir ao banheiro. Convenhamos, não havia necessidade para isso, afinal quem necessitava era eu, e se houvesse um impedimento poderia haver consequências desastrosas, se não para ela, para mim com certeza. Dito e feito. Fiquei tão envergonhado que devo ter entrado em choque, pois, deste fato em diante, não me recordo mais de nada. Apenas uma vaga lembrança de me sentir molhado e catatônico. Esse fato teria contribuído para a minha inibição em ir ao WC, mas não foi isso o que aconteceu.

Com o passar dos anos – adolescência e vida adulta –, o incômodo passou a ser menor, mas nunca deixou de existir. O temor e a timidez se transformaram em observação e estratagemas para desempenhar as minhas funções fisiológicas com tranquilidade e isolamento dentro do WC. Um banheiro só pra mim seria impossível, por isso, à custa de muita observância e autocontrole em minhas funções, consegui, ao longo de mais de 40 anos, resolver esse problema. Esse autocontrole permitia-me adiar a ida até o banheiro, às vezes, por horas. Controle completo da bexiga, que me orgulhava muito.

Mas foram as observações dentro desse ambiente masculino, o qual atrai a curiosidade de tantas mulheres, que estarei aqui expondo, como quem desvela um mistério.

Uma das coisas que mais me incomoda dentro do banheiro é o famoso mictório, que foi desmistificado por completo por Marcel Duchamp, em sua obra “O Urinol”. Na verdade não é o mictório em si, mas a sua localização e disposição. Já tive experiências com vários deles e suas derivações. Desde os mais tradicionais feitos em louça, passando pelos de metal e compridos, como condutos cortados pelo meio, pendurados a parede e atravessados por um filhete de água. Paredes, ora ou outra, serviam também para os homens, seres asseados, verterem o ouro líquido de emanação volátil e pertinente. Talvez venha daí a falta de escrúpulo do macho em verter, em espaços urbanos, o líquido ouro.

Mas, voltemos ao espaço circunscrito do banheiro. Assim que entro em um banheiro público, tenho duas opções: a cabine ou o mictório. A cabine para mim sempre foi vista como o lugar para o número 2, ou em minha mente perseguida (nada de analogias, por favor), local para o refúgio daqueles pouco privilegiados pela própria natureza. É notória a importância que os homens dão a esse fato. Para a virilidade masculina – muito embora não seja condição –, a pujança, força e demais atributos de suas funções fisiológicas podem intimidar os seus pares e determinarem-o como macho dominante diante da manada. Nada mais orgulhoso que um ser humano masculino, nas suas atribuições funcionais fisiológicas, verter com força e propriedade todo o líquido dourado, e, a sua volta, intimidar os seus “adversários”. Por isso, muito embora não sendo menos privilegiado, não me atrevo a entrar na cabine para fazer o número 1. Seria a minha derrotada. Ainda que com timidez, enfrento o desafio da comparação visual, auditiva e olfativa.

Aplico, sempre que posso, os meus estratagemas, que vão desde do cuidado em esperar todos irem ao banheiro, posicionando-me por último, até – quando o banheiro é do ambiente de trabalho, por exemplo – eleger o meu próprio mictório. Mas, nesse caso, quando eleito, posso cair numa armadilha ao me deparar com outro em meu lugar. Isso gera um certo desconforto e uma certa desorientação inicial, que tem que ser sanada, muito rapidamente, de modo a não gerar mais constrangimento.

Mas, ainda assim, apelo para a eleição do mictório posicionado da forma mais discreta e distante dos demais. Se não for possível, que seja compartilhado apenas por um dos lados por outro mictório. Nem sempre há uma pequena divisória, entre um e outro, o que geraria tranqüilidade e conforto.

Optando entre a cabine e o mictório e, depois, elegendo – quando a opção é o mictório – pelo mais discreto e solitário; passa-se ao ato. O expurgo. O alívio. O desapego... sim, em alguns casos, de forma a gerar inveja, há um desapego, contrariando até mesmo a minha tese de virilidade masculina defendida acima.

Como eu já citei, às vezes, sou vítima das minhas próprias artimanhas. A eleição é uma delas. A outra é a minha habilidade do autocontrole, que tem os seus prós e contras. O contra é que ao reter por muito tempo o expurgo, você quando se depara com o fato, o jato, não é rápido... custa a sair. Daí,surge um novo constrangimento (vocês nunca pensaram que seria tão complexo fazer um número 1, né?). Você e o mictório, e nada sai. Tudo seria tranqüilo se você estivesse sozinho e tivesse todo o tempo do mundo, mas aí aparece um... olha pra você, e com a maior naturalidade do mundo, o Niagara Falls se estabelece entre ele e a louça branca. Muitas vezes, o cidadão tripudia de você, assobia como se fosse a coisa mais natural da face da terra (e não é?). Ele vai embora, e a situação persiste. Você impávido, nem uma gota. E para piorar o constrangimento, quando sai... é um orvalhar de envergonhar qualquer bebê.

Mas vamos mudar o foco? Vamos passar a análise curiosa dos companheiros de banheiros. Tem cada peça. Um verdadeiro estudo antropológico.

Tem o “Mirador”, aquele que mira em um dos buraquinhos do mictório ou dos plásticos que cheiram a chiclet (sache) e tenta acertá-lo. O alvo pode ser, também, um gelo ou uma das bolinhas de naftalina. Na maior parte das vezes, esse tipo, antes de botar a pistolinha pra fora, dá uma cuspada para determinar o caminho do jato. Urinar vira uma brincadeira. Acertar o furo, num constante fluxo, é o desafio que vai se desfazendo conforme a bexiga vai se esvaziando. Já no caso do gelo, há um prazer em furá-lo com o jato quente e comprimido, gerando formas com resultados surpreendentes, dignas de nossa arte contemporânea.

Há o tipo “Auto-sustentável”. Põe pra fora o bigulinho, que sem qualquer apoio de seu dono, manifesta-se com autonomia e independência. Voluntarioso. Não há necessidade de controle ou direcionamento. O cidadão chega a colocar as mãos na cintura, com muita naturalidade e propriedade, ou mesmo para trás, numa postura belicosa... ameaçadora.

O que chama mais atenção, pelo sentimento de total prazer, é o tipo “Ahhh! Alívio imediato”. É aquele que surge apressado, nervoso, beirando ao descontrole total. A sua ação é sempre concluída com uma exclamação que varia de um “aiiiiiii!!!” até um “uiiiiiiii!!!!”, passando por seus derivativos, proporcionando um alívio compartilhado por todos.

Os “Desinibidos” nos assustam. Compartilham de suas intimidades que nos deixam – pelo menos a mim – sempre envergonhados. Não sou obrigado a compartilhar essas coisas com ninguém. Sem vergonha, ou pudor, deixam a mostra a torneirinha, para quem quiser ver, como se fosse o seu dedo indicador, fura bolo ou mata-piolho.

Mas, o mais esquisito de todos que já registrei, foi um tipo que pensava que estava participando do “Garoto Bundinha de Neném”. Confesso que nunca tinha visto isso antes, apenas com esse cidadão que freqüentava o mesmo banheiro público que eu. Ele arriava as calças até a altura do tornozelo, deixando parecer o cuecão. Desnecessário!

O mais grotesco é o tipo “Sonoplasta”. Aquele que se sente como um técnico de áudio de estúdio de gravação. Em tempos de violência urbana, com os tiroteios constantes, sua ação passaria desapercebida, se não estivéssemos num ambiente fechado. Às vezes um verdadeiro tiroteio é formado por seu comando involuntário (ou voluntário?), e o temor de uma bala perdida se tornar real.

Antes que me perguntem, sou do tipo “Normal”, aquele que interage e que é cúmplice do comparsa da ação. Não há a remota possibilidade de um distanciamento entre nós dois. Somos unidos pelo sacramento natural e ético, estabelecemos condutas próprias e compartilhadas.

E, para terminar o primeiro capítulo desse tratado (não esqueçam que ainda tem o número 2), para todos os tipos, no final da ação, há a famosa e aguardada, sacudidelazinha. Que pode ser discreta, abrupta ou demorada.

No final, faço como Pôncio Pilatos, lavo as minhas mãos.

Um comentário:

Unknown disse...

Mto bom! Ainda bem que tem final feliz...rs... Beijo